
“Apanhei muitos fregueses na Pastelaria Suíça, belos tempos! Éramos oito engraxadores aqui. Uns morreram, outros foram para a reforma… agora é uma vida triste aqui”. Por estes dias, no quarteirão do Rossio, já só resta um engraxador: o “Tininho”, como é conhecido na Baixa.
Desses tempos de que ele fala, resta já pouco – o edifício onde a Pastelaria Suíça nasceu em 1922 é uma loja Zara. Mas nem a velha pastelaria é a mesma: depois de fechar portas em 2018, reabriu como uma reinterpretação da antiga, que terá sido a primeira de Lisboa a vender o croissant francês.
Na nova pastelaria há também uma figura de bronze, homenagem a Tininho e outros como ele que deram vida a estas esquinas como engraxadores.

Duarte Castelo-Branco, diretor de marketing da Pastelaria Suíça, lembra que na “esplanada muito generosa, muito maior do que esta”, só pelas fotografias de arquivo é possível ver que “teria dez, quinze engraxadores junto à esplanada. Era um serviço que estava disponível aos clientes”.

Quem é o “senhor Vasco”?
A estátua de bronze chama-se Vasco. “Senhor Vasco”. “É um nome bastante português, despido do ponto de vista social, é um nome acessível, simples que permite aqui uma relação com os clientes”, explica o relações públicas. A Suíça pertence ao grupo Primefood que tem outras marcas como a Fábrica da Nata, os restaurantes La Parrilera, a Confeitaria Nacional e a pastelaria Versailles.
“É um engraxador de meia-idade, com uma boina típica, camisa aos quadrados, suspensórios, calças de pinças, sapatos clássicos, e a sua caixa de trabalho, acompanhado com uma cadeira típica portuguesa”, diz Carla Rondão, do atelier Mão de Fogo “Está de braços abertos com as suas ferramentas de trabalho nas mãos, e um sorriso contagiante, a olhar para o seu cliente, e à espera de limpar os seus sapatos, e ouvir os seus desabafos do dia a dia”, acrescentam.
Da Segunda Guerra para a “bompernasse”: como nasceu a profissão de engraxador?
O “senhor Vasco” leva-nos numa viagem até tempos mais distantes. O primeiro engraxador terá sido um operário que, no ano de 1806, poliu as botas de um general francês em sinal de respeito, e foi assim recompensado com uma moeda de ouro.

Bem mais tarde, na Segunda Guerra Mundial, surgiriam os “sciusciàs”, rapazes italianos que lustravam as botas dos militares. Essa realidade seria, aliás, retratada num filme do realizador neo-realista Vittoria de Sica, o Sciuscià. O filme é protagonizado por Franco Interlenghi e Rinaldo Smordoni. Nele, contam-se as dificuldades enfrentadas por dois rapazes que engraxavam sapatos a soldados americanos depois da Segunda Guerra.

Os engraxadores espalhar-se-iam por toda a Europa e pelo mundo, surgindo também pelas ruas de Lisboa, fixando-se em vários pontos da Baixa.
Um deles a Suíça, claro, essa esplanada que ficaria também conhecida pelo nome jocoso “Bompernasse” (um trocadilho com Montparnasse de Paris e as belas pernas que era possível admirar-se na esplanada). No livro “O Cavalo Espantado”, Alves Redol recorda “a montra de pernas e de coxas para todas as gulas lisboetas.”
“Estás só a dar-me graxa!”
Jorge Lopes senta-se num banquinho alto na rua das Portas de Santo Antão, com o pé apoiado na caixa de engraxar sapatos, forrada a autocolantes do seu clube, o Benfica. É engraxador há mais de 40 anos. Quando começou, tinha apenas 14.
Eram tempos diferentes, conta ele. “Na Suíça, havia um engraxador aqui, outro acolá…”.

Nos Restauradores, Manuel Pereira, 53 anos, 33 dos quais passados a engraxar sapatos, diz que “a história do engraxador vem atrás do sapateiro.” No final de um dia de trabalho, o sapateiro arranjava uma caixa e ficava a engraxar sapatos ao lado da loja. Ao verem-no, os miúdos passaram a servir-se de caixas de fruta para engraxar os sapatos dos transeuntes. Muitas vezes, dariam uma simples escovadela, e os donos dos sapatos responder-lhes-iam: “Não me limpaste os sapatos, estás só a dar-me graxa!”.
A história da ligação entre sapateiros e engraxadores é evocada numa reportagem de 1973 conduzida pelo jornalista Fernando Pessa. Nela, o jornalista alerta o engraxador: “Ó senhor António, não se esqueça que eu no pé esquerdo tenho um joanetezinho, portanto dê uma folga, e no pé direito tenho assim um calinho que às vezes me aborrece.”


Licença para engraxar
A vida dos engraxadores foi mudando. Em 1993, uma reportagem da RTP anunciava que os engraxadores passariam a precisar de licença. “A Câmara de Lisboa quer pôr ordem na desordem, e vai passar a licenciar quem dá brilho ao sujo”, dizia a reportagem, passando também a ser obrigatória a aquisição, pelo preço de seis contos, de uma cadeira especial.
Dona Natividade, a única mulher engraxadora na altura, não gostou da ideia: “Devia ser a Câmara a dar!”, protesta ela na reportagem.
Manuel Pereira conta ter sido dos primeiros a conseguir licença de engraxador.
Ele foi o único que não conseguiu fugir quando um grupo de polícias veio até ao Cinema Condes fazer uma vistoria – Manuel tem as pernas paralisadas, o que não impediu, garante, de levar uma valente tareia da polícia. O pedido de desculpas viria mais tarde, por parte do município: uma licença de engraxador.

Os novos tempos e os ténis
Dos anos 90 até 2024, muito mudou nas ruas de Lisboa. A Suíça fechou. Hoje, são poucos os que engraxadores que resistem. E se resistem é graças aos clientes habituais, dizem todos.
Para eles, a morte do engraxador foi ditada por um só golpe: a popularidade do ténis. “A maioria das pessoas hoje em dia usa ténis”, lamenta Jorge. Até mesmo os turistas, muitas vezes a salvação dos engraxadores da Baixa de Lisboa, sucumbiram à moda: “Estrangeiros, dantes havia muitos estrangeiros com sapatos, agora já não…”, diz Manuel.
Entre 2010 e 2011, a Santa Casa da Misericórdia, em parceria com o IADE – Creative University, o ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e a Associação Cais, lançava o projeto “Tradição – Engraxadores”, com o objetivo de reabilitar esta antiga profissão, formando pessoas desempregadas na arte de engraxar. Mas também de combater o estereótipo associado à profissão: na altura, um estudo do ISCTE mostrava que, apesar de os clientes verem o engraxador como uma figura amigável e de confiança, o ofício surgia muitas vezes associado ao alcoolismo e à toxicodependência.



Treze anos passados desde o projeto, pouco parece ter mudado. E, por isso, a Pastelaria Suíça diz ter querido dar um novo empurrão a esta profissão em vias de extinção. “Fomos falando com os engraxadores para ver como estava a Baixa e a profissão, e eles corroboraram a nossa visão: todos reconheciam que não foi reconhecida do ponto de vista histórico e que está a desaparecer…”, conta Duarte Castelo-Branco.
Mas adverte: “Não queremos que isto seja só uma estátua perdida na esplanada, um motivo instagramável da loja.”
Duarte diz ainda que a pastelaria equacionou a possibilidade de ter engraxadores na esplanada, tal como acontecia no século XX. “Não o quisemos fazer porque a Praça da Figueira está em grande transformação e quisemos dar passos pequenos. Até esperamos que o surgimento de engraxadores na esplanada possa acontecer de forma orgânica.”
“Tininho”, que engraxa sapatos mesmo ao lado da Suíça, não podia estar mais contente com a estátua. “É uma homenagem aos engraxadores, tenho de agradecer à Suíça!”. O mesmo diz Jorge Lopes: “Achei bonita a estátua, esta é uma tradição com muitos anos.”


Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 28 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

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