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Nos meus primeiros meses em Lisboa, eu dava dinheiro a toda a gente. Note-se, por favor, que contava as moedas todas: vivia numa lavandaria transformada, pequena até para um coelho-anão acabado de nascer; cozinhava hidratos com salsichas que duravam a semana toda; apontava, numa folha Excel, cada meio euro que gastava. Vivia em mínimos olímpicos, inspirada pelos russos que lia, e jamais me passaria pela cabeça comprar um gel de banho se não fosse o mais barato.
Ia para o Bairro Alto com os meus amigos e, se o sítio era o mesmo, a vida não era igual: eles tragavam amendoins e tostas, eu escandalizava-me com os preços de Lisboa; eles mandavam vir uma cerveja e depois outra, eu levava no bolso do casaco uma garrafa de marca branca que enchia com água da torneira; eles pagavam entradas em discotecas e eu ia para casa; eles de táxi, eu a pé. De mim não saía um cêntimo que não me fosse arrancado a ferro.
Dormir numa lavandaria não era um escândalo para alguém que tinha passado anos a dormir num cabeleireiro. Nos meus primeiros anos de vida, a minha cama era dobrável, ficava discreta durante o dia, era aberta durante a noite ao lado do secador. Tive de chegar aos 18 para não ter de apanhar chuva quando queria lavar os dentes no Inverno.
A vida lá se fez, saí da minha zona, vim para a capital, o meu sotaque amaricou-se e, às vezes, entre o lanche, até as letras como – tem sido um banquete de vogais. Mas corria 2012 e eu não sabia o que a vida podia ser. Sem outro remédio, corria, e eu fazia o que podia com ela. Os meus mínimos olímpicos tinham um propósito, ou três: findo o ano, queria pagar as propinas de dois mestrados e que a coisa me sobrasse para ir de mochila às costas pela Europa. Assim fui, mais uma vez em mínimos olímpicos. Se tivesse de andar cinco quilómetros para poupar setenta cêntimos, ainda me sentia feliz por não ser manca.
Nada em mim sabia a dinheiro naquela tarde no Lidl. Eu mal vestida, como sempre, que é um talento que cá tenho. No meu carrinho, o mais barato, em quantidade pouca, sem proteína animal. Não sentia que houvesse problema porque a fome nunca chegava ao estômago: eu queria era mais, mais cidade, mais mundo, mais livros, mais coisas metidas na cabeça.
Falava com a minha mãe ao telemóvel e por isso nem liguei à senhora que me disse qualquer coisa. Murmurei-lhe um “Não, não”, que mãe é mãe, mãe é milagre, e a minha merece que a ouça, que lhe estenda um tapete de flores todos os dias. A senhora lá continuou, meio perdida, meio à toa, e depois de desligar aquilo ficou a fazer eco. Encontrei-a de novo. “Precisa de ajuda?” Os olhos eram de cão aflito. Procurava sem encontrar, qual bicho desamparado na iminência do fogo. Eu não podia deixar que a senhora se queimasse.
Quase chorou. Que sim, que sim. Que ninguém lhe dava a mão. Que a vida não era fácil. Que tudo corria mal. Que só precisava de que alguém a ajudasse, só uma ajudinha para comprar coisas para a sopa. Teria a idade da minha mãe e eu, que sempre me achei mãe da minha mãe, e por isso minha avó e minha irmã, não a podia deixar desamparada. Descansei-a: que viesse, que trouxesse as coisas para a sopa, podia pôr na minha conta. A agradecer, quase chorou, e eu senti-me imprestável por alguém precisar de mim.
Minutos depois, lá chegou ela. Na mão, trazia um saco de plástico com alho-francês, batatas, cenouras. Sem sopa não ficaria, ninguém passaria fome por eu ter olhado para o lado. Num rasgo de confiança, lá me perguntou: “Não se importa de que eu leve mais uma coisinha?” E eu não me podia importar. Qualquer pessoa podia ser aquela, as circunstâncias mudam, a vida dá mortais para trás. Disse que a ajudava e ela foi às prateleiras.
Passei as minhas compras e paguei-as. Ainda me lembro: 14 euros e tremi. Ainda teria de pagar mais 2 ou 3 pelos legumes e fiquei ali a pensar na minha folha Excel e na minha poupança de faminta. E lá veio a senhora, ainda com os seus olhos aflitos, e então chegou tudo: as cenouras (umas dez?), o alho-francês, as batatas, as beringelas, as cebolas, a abóbora-manteiga. “E esta carninha para a sopa, não se importa?” Eu disse que não, apesar de nunca ter posto carne na sopa, e o meu coração galopou quando vi o saco cheio, a etiqueta a dizer 15 euros, e ainda os dois mais pequenos que chegaram a seguir.
E o gel de banho da Dove que nem sequer estava em promoção. E a garrafa de azeite que não era marca branca. E os guardanapos grossos cinco vezes mais caros do que os que eu usava. Ia tendo um piripaque, mas já tinha dito que sim. E aquilo veio e veio, o tapete rolante seguia impassível, as compras amontoavam-se e a minha conta bancária já gania. Falta-me, na vida, o dom para fazer o óbvio, dizer um “Desculpe, nem pensar”, um “Não pode pelo menos trocar os guardanapos?”, ou mesmo “Tenho a certeza de que há um gel de banho que custa um quinto e faz o mesmo efeito”. Tinha dito que sim e engoli, sentindo o fel de perceber que tinha sido enganada forte e feio. E paguei 70 e tal euros sem perceber se a senhora achava que eu era rica ou idiota.
Os meus amigos bem diziam, nos meus primeiros tempos em Lisboa, “Olha que ele não vai de comboio, quer dinheiro para a droga”, mas eu achava-os uns cínicos, via que não percebiam o que era precisar da mão de alguém. Via que não concebiam que éramos todos o mesmo chão, que eram os outros e podíamos ser nós, que não havia outros. Acabei por lhes dar razão quando uma miúda me pediu dinheiro no metro do Chiado: precisava de trocos para o comboio e ainda por cima era o seu aniversário.
Já no sábado anterior tinha feito anos e, embora eu soubesse que o tempo passa a correr por todos, percebi também que a maior lorpa era eu. Ao sair do Lidl, telefonei de novo à minha mãe. Para lhe dar, só tinha uma sentença: “Acho que em Lisboa as pessoas gostam de se enganar umas às outras.”

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.