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Ainda não sabia que queria ser escritora e já me interessava pelo processo de escrita. Foi por essa altura que trilhei os Paraísos Artificiais de Baudelaire, nos quais o ópio, o haxixe e o vinho são utilizados por intelectuais porque há substâncias que “contêm a faculdade de aumentar desmedidamente a personalidade do ser pensante”. Não provei logo do ópio e do haxixe, mas não me fiz tão rogada em relação ao vinho.
Só em parte a literatura precede a vida. Queria compreender a matriz da criação e os hábitos – até os mais prosaicos e (principalmente) os mais sórdidos – de gente como Sartre, Camus, Dostoyevsky. Cheguei a tentar escrever de pé como Pessoa ou Eça. Percebi cedo que estava mais próxima do pijama às riscas de Fitzgerald e do seu gosto por champanhe.
Saber como um escritor escreve não deixa de ser uma intrusão. Colocar, instintivamente, as mãos entre as barras de um portão ferrugento e dar com o trinco. Lá dentro descobre-se a morada sagrada do nobre artesão do verso sofrido ou a pluma frívola dos bafejados pela inspiração. À falta de melhor, traçamos geografias porque é absolutamente necessário desenhar o mapa, unir a frase à tabuleta onomástica e o adjetivo à parede descascada.
Quem escreve caudalosamente terá infiltrações no sótão? Os sumérios utilizavam – pela abundância da matéria-prima – a argila para escrever e, quando queriam que os registros fossem permanentes, colocavam as tabuletas cuneiformes no forno. A dificuldade – se comparada com os teclados cheios de atalhos – teria de conferir outra solenidade à palavra grafada. Ulisses de Joyce é tão labirintinco como as ruas, construções e locais de Dublim. E os autores lisboetas, com o problema que há na recolha do lixo urbano, escrevem rodeados de resíduos orgânicos. É isto o escritor da capital: às vezes uma pessoa, às vezes um resíduo orgânico. Daí chamarem-nos memoriosos e aos nossos livros o que fica deste vasculhar de caixotes, os nossos e os alheios.
Para os que insistem, só posso lamentar. Um escritor é como aqueles cenários de programas de televisão generalista em horário nobre. Holofotes e palmas no ecrã. Pregos tortos e juntas à mostra quando se vê ao vivo. E para que este texto não paire na leveza da impessoalidade e não receba mensagens de ódio de gente que afinal escreve sobre saltos agulha e envergando casacos de linho, reafirmo que este desleixo estético e – por vezes – higiénico é apanágio meu e não da classe.
Não consigo escrever calçada, ou apertada nas calças slim, ou maquilhada, ou com os dentes acabados de lavar, ou com um rolo de papel higiénico por estrear na casa de banho. Também não escrevo direita, à mesa, como os funcionários diligentes, mas antes acomodada e torta no sofá ou na cama (e de pijama o dia todo como Fitzgerald. Assim me deixem!). A produtividade aumenta pelo acordar e antes do banho. Há quem defenda que é apenas e só uma anulação do eu estético, outros garantem que é badalhoquice.
Enfim, tenho ainda o problema da loiça. Taças de cereais, pratos com restos de bolo raspados a garfo, canecas de café, e, na incapacidade de encontrar um talher lavado na gaveta, testo o equilíbrio. A pilha segue para a cozinha, o primeiro parágrafo do texto sustenta tudo, a faca da adjetivação ameaça cair, e, junto ao lava-loiça, encontramos o detalhe que nos faltava para a última frase.
Quando já parasitei a minha casa, ligo aos amigos. “Ouve lá, posso ir escrever praí?” Ao chegar, abrimos uma garrafa de champanhe (é mentira, os escritores não têm dinheiro para champanhe) e citamos Baudelaire a trouxe-moche: “Deve-se estar sempre embriagado”, alguém exige ao segundo copo. “Mas de quê? De vinho, de poesia ou virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos”. Uma lição para a escrita e para a vida do poeta francês. Com tanta desordem, não admira que os palavrões abundem nos meus livros, dirá o biógrafo.

Filipa Martins
É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.