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A processar…
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O meu velho pai enfiava-se pela mata de Monsanto para me mostrar as criações de Deus, mas eu olhava para o chão à procura da hipotética origem. Se tivesse de escolher uma razão para o nosso inexorável afastamento, seria esta: ele espantava-se com os efeitos, quando a mim me interessavam as causas. O início e o fim serão a maior distância entre duas pessoas. 

A mata densa, que sitia com a aproximação confortável de um cobertor, pouco devia à misericórdia de Deus. Era um ecossistema que partiu da vontade humana. Por vontade do Altíssimo, a serra de Monsanto era careca e castanha, desoladora como o purgatório.

O resto foi feito pelas mãos de presidiários, militares, catraios evangelizados pela Mocidade Portuguesa, que erguiam o braço cobarde para cantarem o hino e rezavam à saúde de Salazar.  Foram eles que, de costas quebradas sobre o chão, plantaram as árvores de Monsanto, uma a uma.  E, claro, há sempre a visão de um homem, cujo olhar se sobrepõe em distância e ambição. Duarte Pacheco. Deu nome ao viaduto, mas fecundou dez por cento de Lisboa.

Dizem que, com o tempo, nos afiguramos à paisagem que nos viu nascer. O relevo encrespado das personalidades belicosas; o remanso do olhar bovino da planície. O meu pai nasceu na soleira de Monsanto. As amoras do parque coziam em lume baixo até serem uma calda grossa que cobria torradas ao pequeno-almoço. As pinhas da serra alimentavam a fogueira do inverno e queimavam as alcachofras no verão, revelando se os amores juninos eram para durar. O pé de rosmaninho, entalado na falha do incisivo, foi a flor com que ganhou os beijos das namoradas. Mantinha a urbanidade silvestre dos animais misteriosos.

Dizem que os homens se afiguram à paisagem que os viu nascer. Não sendo eu crente, concordo que o meu pai se assemelhava a Deus e menos aos dedos de trabalho dos fascistas; por isso, nunca lhe contei a verdadeira origem do parque. Talvez ele a tenha descoberto por si, pois houve um dia em que deixou de entrar na mata da mesma forma.

Era aquilo que os críticos de teatro dizem dos atores experientes, mas preguiçosos. Apontava-me as criações naturais com alheamento, numa imitação de um gesto anterior, mostrando-me mais o ator do que a personagem. Ainda assim, as árvores ovacionavam-no. Com o restolhar dos ramos, pareciam multidões.

Coletivamente, a floresta aceitava a performance falsificada do meu velho pai. As multidões têm a bênção do esquecimento, dizemos que a história se repete. O homem não consegue esquecer da mesma forma e eu lembrava-me.

O meu velho pai tinha livros aparentemente repetidos nas estantes. Digo aparentemente, porque o mesmo livro não entra e fica de igual modo. Casou e herdou a biblioteca da minha mãe. Chegamos à paixão quando decompomos e amalgamamos bibliotecas como se fundíssemos salivas e excluímos os livros coincidentes, repetimos o procedimento com os discos, os filmes, certos utensílios de cozinha e, por fim, os outros, personalidades e memórias. Com sorte, chegamos ao amor e a febre de amalgamar baixará com prescrição de rotina. Estaremos prontos para começar a criar em conjunto. Eles chegaram ao amor.

Foi quando a minha mãe morreu que ele deixou de entrar em Monsanto da mesma forma. Apreendemos que as memórias não estão cingidas ao cérebro, que afinal cada parte do nosso corpo pode ser um sistema de arquivo. O meu velho pai dizia que as pernas desaprenderam a andar quando ficou paralítico e achávamos que era o cérebro que já não as mandava andar, mas não. Elas já não se lembravam como era. Mas o pior foi o coração.  Quando a minha mãe morreu, foi o coração dele que desaprendeu.

Depois, aconteceu o que leram nos jornais. A paisagem que faz o homem durante anos é desfeita por este no tempo de um fósforo. Sem coração para entrar na mata, tornou a serra imagem da vontade de Deus, careca e castanha.


Filipa Martins

É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.

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