
Os sinos da igreja de São Nicolau anunciam o meio-dia, as batidas da picareta de um funcionário da câmara martelam a calçada portuguesa, há o entra e sai apressado de clientes na agência de Santa Justa dos CTT. Ao fundo, um casal observa a miríade colorida da montra da Pollux. Tudo compõe a aguarela de uma típica manhã lisboeta.
Ninguém suspeita, nem o funcionário com a sua picareta nem os clientes do CTT e muito menos o casal diante da montra, que, há nove séculos, aquele pacato trecho da Baixa testemunhou o braço-de-ferro entre as forças religiosas da época, numa disputa pelas relíquias de São Vicente, então o santo mais venerado da Europa ocidental, extraviadas do Algarve para Lisboa por um grupo de lisboetas.
São Vicente seria padroeiro de Lisboa e do Reino de Portugal e, e até hoje empresta as suas armas – o barco ladeado por dois corvos – à bandeira da cidade e aos demais símbolos da Câmara Municipal, do papel timbrado às tampas dos bueiros.
Este ano comemoram-se os 850 anos dessa imagem, com a chegada a Lisboa das relíquias de São Vicente, dia 16 de setembro. E haverá um programa de iniciativas para comemorar a data. Este sábado, dia 16 de setembro, haverá atividades comemorativas organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa, como visitas guiadas à Sé de Lisboa e ao Museu do Mosteiro de São Vicente, concertos corais e uma mesa redonda.
Um santo esquecido
Corria o ano de 1173 quando reza a lenda Um bando de corvos escoltam até Lisboa a barca com as relíquias de São Vicente, padroeiro das batalhas e das vitórias, por um dos canais do Rio Tejo, onde hoje está a Rua do Ouro. Pela calada da noite, as aves de plumas negras dão por terminada a missão de transportar os restos mortais do mártir até à então Igreja de Santa Justa… onde hoje está Pollux – junto às escadinhas, segundo o olisipógrafo Noberto Araújo.
Apesar do início nesta lenda gloriosa, ao longo dos tempos São Vicente viu a sua relevância em queda vertiginosa, paulatinamente substituído no coração e na devoção dos lisboetas pelo simpático Santo António – que muitos tomam por padroeiro da cidade.
Em várias ocasiões, nomeadamente na data do seu nascimento, o santo é lembrado pelo Museu de Lisboa. E com base nessas atividades, propomos um passeio por alguns pontos da cidade bastantes conhecidos pelos lisboetas, mas que raramente são associados a São Vicente. Mais do que um passeio, uma viagem no tempo e na história deste santo esquecido.
Do Algarve a Lisboa, escoltado por corvos
Um destes pontos – que não chega a ser turístico – é justamente o pequeno largo em frente a Pollux, na Rua dos Fanqueiros. Em 1173, há exatamente 850 anos, as relíquias de São Vicente chegaram a Lisboa, e foi aqui, onde hoje é a tradicional loja de artigos para decoração, restauração e afins que elas foram depositadas.



Pode parecer estranho pensar nos restos mortais de um santo entre liquidificadoras, formas para bolo, louças e varinhas mágicas, mas à época havia aqui a igreja de Santa Justa, desaparecida durante o terramoto de 1755. Um sítio importante a comunidade moçárabe lisboeta, os cristãos visigóticos que mesmo não convertidos ao islão adotaram ritos da cultura árabe, inclusive religiosos.
Os moçárabes têm papel de destaque na chegada de São Vicente a Lisboa. Reza a lenda que o paradeiro das relíquias do santo era conhecido apenas por dois velhos monges moçárabes. Ambos ainda jovens faziam parte de um grupo de cristãos capturados pelas tropas de Dom Afonso Henriques na Batalha de Ourique, no Alentejo, em 1139.
Reza a lenda que o paradeiro das relíquias do santo era conhecido apenas dois velhos monges moçárabes.
“Depois de passarem um período em Coimbra, estabeleceram-se em Lisboa, após a reconquista”, conta Joana. Os dois monges juravam que as relíquias estavam na Igreja dos Corvos, na região do promunturium sacrum, hoje Sagres. “A questão é que só os dois velhos moçárabes pareciam conhecer a localização exata”, explica a guia, Joana Olivença, do Museu de Lisboa.
A história chegou aos ouvidos de Dom Afonso Henriques, devoto de São Vicente, padroeiro das batalhas e das vitórias. O primeiro rei de Portugal já havia consagrado ao santo a igreja de São Vicente, uma construção situada do lado de fora da muralha defendida pelos mouros, misto de acampamento, hospital e território sacro para sepultar os seus homens.
Isto cinco séculos antes de ser erguida a atual Igreja de São Vicente de Fora.
“Apesar da devoção, Dom Afonso Henriques falhou em encontrar as relíquias de São Vicente”, lembra Joana. “Acredita-se que São Vicente não queria ir para Braga ou Coimbra, para onde o rei iria levá-lo. Ou seja, não foi Lisboa que teria elegido o seu santo padroeiro, mas o contrário.”

O certo é que os lisboetas moçárabes tiveram êxito onde o rei fracassara. E na calada da noite de 16 de setembro do ano da graça de 1173, navegaram silenciosamente por um braço do Tejo que seguia por onde hoje é a Rua do Ouro, na Baixa. Naquela madrugada, a embarcação escoltada pelos corvos aportou no cais que havia na atual Praça da Figueira e as relíquias do santo foram depositadas na Igreja de Santa Justa. E vem daí o símbolo que resta até hoje.
Uma mão lava a outra e as relíquias vão para a Sé
“Naquela época, possuir as relíquias de um santo era sinal de poder e de dinheiro”, reforça Joana Olivença. “Os fiéis acreditavam que tocar na relíquia de um mártir era como estabelecer um canal direto com Deus, o que era a garantia de prestígio, de doações e de riqueza para a igreja”, explica.
Sendo assim, naturalmente a notícia de que os moçárabes de Santa Justa estavam de posse das relíquias de São Vicente provocou um alvoroço entre as forças religiosas de Lisboa. Os monges da Igreja de São Vicente de Fora achavam-se herdeiros naturais da mesma, assim como o deão da Sé de Lisboa, Roberto. Além é claro, da comunidade moçárabe responsável pela descoberta.

A contenda por pouco não acabou em revolta popular. Foi preciso a intervenção do fronteiro de estremadura, Gonçalo Viegas, o responsável pela segurança da região, que abandonou o seu posto de observação no Castelo de São Jorge para colocar ordem na Baixa, no mesmo largo da Pollux.
A decisão sobre o destino das relíquias de São Vicente, contudo, acabou por se dar pelas vias diplomáticas, com a oferta do deão Roberto ao reitor de Santa Justa, Munio, de uma posição proeminente na Sé de Lisboa. Uma mão lavada pela outra, o futuro padroeiro do reino e de Lisboa descansaria na monumental catedral ainda em construção.
O impressionante martírio do santo e os corvos
Zo pé da Sé de Lisboa, as ruínas do Teatro Romano marcam simbolicamente o martírio sofrido por São Vicente nas mãos dos romanos, em 22 de janeiro de 304, vítima da implacável perseguição imposta pelo imperador Diocleciano aos cristãos que se recusavam a negar sua fé em nome das práticas religiosas tradicionais no império.

Nascido provavelmente em Saragoça, em Espanha, Vicente foi capturado pelos romanos e levado a Valência. E o martírio do futuro santo diz muito sobre sua devoção pelos resistentes às provações da vida. São Vicente teria sofrido da tortura de sono ao desconjuntamento dos membros, bem como teve o corpo arranhado por luvas com garras de ferro e posteriormente colocado sobre brasas.

Não satisfeitos, os romanos atiraram o corpo do santo para ser devorado pelos animais, dentre eles os corvos. Estranhamente, os pássaros renunciaram à sua característica necrófoga e passaram a defender os restos mortais de São Vicente dos demais predadores, no que foi considerado o seu primeiro milagre.
O segundo viria logo a seguir, quando os incrédulos soldados romanos atenderam às ordens do governador de Valência para amarrar o corpo de São Vicente à uma pesada pedra-de-mó e atirá-lo ao mar. Mal acreditaram quando, dias depois, São Vicente retornava à praia, livres das amarras e do peso.
“O martírio do santo foi tamanho que em alguns países ele é representado pela palmatória e pela pedra-de-mó”, explica Joana, em frente das colunas romanas do teatro lisboeta. “Só em Portugal a iconografia de São Vicente envolve a barca e os corvos.”
Joana explica ainda que as relíquias do santo, protegidas num dos cofres do Tesouro da Sé, se restringem à mão direita e parte de um dos braços. Isto explica outras cidades também contarem com relíquias, como Paris, em França, e Bari, na Itália. “Conta a história que um monge espanhol a caminho de Jerusalém morreu na cidade italiana, deixando um dos braços do santo que levava em Bari, sendo este posteriormente repatriado à catedral valenciana.”
Em Lisboa, as relíquias só saem do Tesouro da Sé durante a missa que se realiza na catedral no dia do aniversário de morte de São Vicente, 22 de janeiro.
Superado pela “concorrência” de Santo António
O tour pela Lisboa de São Vicente passa pelo largo de Santo António. Mas não é por provocação. “Aqui havia a Porta de Ferro, uma das entradas da muralha de Lisboa. É um sítio que marca o início da reconquista que alçou São Vicente a padroeiro da cidade e do reino”, explica.
Não deixa de ser curioso, afinal, o martírio de São Vicente como padroeiro de Lisboa passa pelo prestígio de Santo António, que desde 1981 ocupa oficialmente o posto que antes pertencia ao mártir. “Foi a partir do Concílio Vaticano II que foram definidas as regras sobre padroeiros e seu culto. Em Lisboa, a decisão determinou que Santo António seria o padroeiro da cidade e São Vicente, o da diocese”, conta Joana.

A decisão confirma a queda de prestígio do santo que, nos anos 1930, já havia visto os bispos portugueses pedirem ao papa para que o concorrente se tornasse o padroeiro da nação portuguesa. “São Vicente foi perdendo importância a partir do século XVII para Nossa Senhora e outros santos, como São Jorge e São Francisco. A faceta casamenteira de Santo António ajudou-o a ser ainda mais popular”, explica.
Esquecido, São Vicente contempla a cidade da qual já foi padroeiro a partir das Portas do Sol, tendo como pano de fundo a igreja que leva o seu nome. Esculpida pelo artista Raul Xavier, a obra de arte foi instalada no miradouro em 1973. Com cerca de três metros, foi o último dos cinco modelos enviados para aprovação e teve como modelo não algum possível rosto conhecido do santo, mas o do filho do próprio escultor.

E os corvos?
Os corvos estão de ambos os lados da barca, e, de acordo com a lenda de São Vicente, foram eles os responsáveis pela resistência oferecida pelo mártir durante a tortura a que foi submetido pelas mãos dos romanos e, mais tarde, a escolta atenta dos restos mortais do primeiro padroeiro de Lisboa até ao seu lugar de descanso eterno.
Mas porquê corvos? E ainda se vêem em Lisboa? Como podemos avistá-los?
Apesar de ser uma espécie natural de Portugal, as oportunidades de avistar algum exemplar de corvo em Lisboa são já escassas. Quem o diz é Gonçalo Elias, ornitólogo que participa nas comemorações dos 850 anos:
“É completamente incomum. O corvo é uma espécie que vive normalmente em regiões mais remotas, muitas vezes com escarpas onde constroem os seus ninhos. No entanto, é possível que no passado tenham estado também presentes no litoral, nomeadamente em Lisboa, isto quando não havia tanta densidade populacional”.
E, hoje em dia, esta ave que personifica a capital é considerada uma espécie ameaçada: graças ao abate ilegal, à intensificação agrícola, à perseguição direta e à utilização de venenos para controlo de predadores: “As estimativas que existem é que haja menos de dez mil corvos em Portugal. Não há números mais precisos que isto, mas pensa-se que esteja em diminuição”, suspeita o especialista.
Contudo, é possível que pense já ter visto uma destas aves recentemente e, se calhar até com alguma frequência, a sobrevoar os céus lisboetas. Porquê?
Gonçalo Elias esclarece: “A gralha preta é uma espécie frequentemente avistada em Lisboa e arredores. Em certas regiões, as pessoas normalmente chamam corvos às gralhas e vice-versa. Portanto sim, há aqui alguma confusão.”
Desde infortúnios à esperança, a verdade é que esta ave negra possui um papel de destaque em Lisboa e na mitologia. Em Portugal, o corvo é frequentemente associado à ideia de morte, solidão e ao mau presságio, devido à sua coloração negra e hábitos necrófagos – comem carne morta. Mas também podem simbolizar a sabedoria, a fertilidade e a esperança.
Outro exemplo de um simbolismo antagónico relativamente ao mais conhecido em Portugal é a representação do corvo na mitologia nórdica. Nesta mitologia, o corvo é um companheiro de Odin, o Deus da sabedoria, bem como da guerra e da morte. Os corvos surgem sob a forma de mensageiros de Odin, que andam pelo reino dos humanos, enquanto recolhem informações para o Deus Nórdico.
Há alguma origem cristã europeia em muita da mitologia negativa dos corvos. Na Bíblia, enquanto a pomba branca traz um ramo de oliveira que remete para a ideia de paz, o corvo libertado por Noé após o dilúvio não trouxe nenhum sinal de terra firme, o que contribuiu para associar um valor simbólico negativo a estas aves.
* Artigo publicado originalmente a 22 de janeiro de 2022.
* Versão mais recente elaborada com Tomás Delfim. A paixão pelo jornalismo aflorou apenas durante a própria licenciatura em jornalismo, mas, como se costuma dizer, mais vale tarde que nunca. Entrou para a Mensagem com a missão de praticar o jornalismo que lhe proporciona uma maior realização pessoal e profissional: contar histórias de pessoas e da sua cidade. Mas, para ele, “o jornalista é apenas o mensageiro das histórias que as pessoas têm a contar.”

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Faço o comentário com todo o gosto:
Dou os parabéns a quem teve esta iniciativa, através da qual vim aprender tanto sobre os dois padroeiros: São Vicente e Santo António. Que eles abençoem Lisboa e os seus habitantes. – 28.01.2022. – João Caniço.
Parabéns! Curiosa e bem elaborada toda esta informação. Li atentamente e apreciei. Bem-Hajam a todos que se empenharam nesta investigação 🙏